terça-feira, 2 de junho de 2015

Honra à Constituição Brasileira

Não é meu perfil publicar esse tipo de texto, que tanto me expõe. Mas de alguma maneira que não sei explicar me sinto impulsionada a fazê-lo... Isso porque já passaram 60 dias desde que o escrevi. É como se fosse um dever meu com a sociedade - ou pelo menos, com parte dela.

No dia 31-março, por volta das 07h30 da manhã, ouvi a seguinte frase de uma jornalista da rádio Jovem Pam:

“Segundo a constituição, todos são iguais perante a lei. Oras, se eu sou igual ao meu vizinho, porque ele tem direito a cota e eu não”.

Acho que não preciso dar mais detalhes sobre qual era o tema abordado pelo programa.

A discussão em questão me levou de volta aos meus dezoito anos, pois foi nessa época que os projetos de cota começaram. E nessa viagem de volta ao passado, apliquei o ilustre raciocínio da tal jornalista ao contexto da minha vida naquela época:

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque meu vizinho faz Direito na PUC, enquanto eu passo fome?”

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque eu, que sempre fui uma aluna aplicada, não tenho a menor chance de estudar Medicina, tenho que trabalhar para pagar o cursinho e, provavelmente, nem com 3 anos de cursinho recuperaria tudo o que não aprendi na escola?”

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque tantos jovens só começam a trabalhar nos seus últimos anos de faculdade, enquanto eu, com 18 anos e cheia de vontade de ser alguém na vida, tenho que trabalhar de segunda a sábado, do outro lado da cidade e ainda aguentar velhos torpes, entre os quais médicos e advogados que alguém deve acreditar que sejam de respeito, me despindo com os olhos, como se eu fosse uma cadela?”

Eu trabalhei por um ano no comércio, em um bairro nobre da cidade de São Paulo. Vivi diversos constrangimentos por clientes me cantarem ou me olharam de certa maneira que jovem nenhuma quer ser olhada. Sofri diversos tipos de humilhação ocasionadas pelo público alvo medíocre que não convém comentar.

Naquela época, eu fiz uma dura escolha na vida: deixei de comer para estudar. Eu almoçava marmita na loja por volta das 13h00 e a noite ia para o cursinho, sem comer nada. Meu salário só dava para pagar o cursinho, a condução para ir ao cursinho e 22 cafés puros, de coador. Na primeira quinzena do mês, eu ainda conseguia comprar um pacote de bolachas Adria e fazia ele durar a semana inteira. Na segunda quinzena do mês, eram só os 50ml de café puro mesmo.

Quando chegou o mês de julho, eu não aguentava mais aquela rotina. E o maior problema não era a fome - já tinha me acostumado. O problema era o inverno. Eu passava frio o dia inteiro na loja, passava frio no cursinho ao ponto de não conseguir prestar atenção na aula e ainda tinha que tolerar gente com aqueles casacos de neve (que acho que os vestiam somente para ter onde exibi-los) dizendo que a sala estava abafada, para esfriar mais o ar. Eu não tinha roupa adequada. Me dirigi ao coordenador para verificar se frente a minha situação seria possível algum desconto na parcela – quem sabe assim eu seria capaz de comprar um casaco. Ele me tratou com desprezo, como sendo a coisa mais comum do mundo um aluno ir pedir desconto, sequer se deu ao trabalho de ouvir a minha história e disse que só o que podia fazer era re-parcelar o curso (as parcelas que iriam até janeiro, seriam redistribuídas até fevereiro).

Saí do cursinho. Poucas vezes na minha vida eu chorei como chorei naquela ocasião.

Eu me pergunto: será que a tal jornalista da Jovem Pam, com seu raciocínio altamente lógico, viveu algo parecido com o que eu vivi?

Eu nunca fui beneficiada por nenhum sistema de cota, nem mesmo pela isenção da FUVEST. Eu não sou a favor de cotas em universidade para negros, porque penso que os negros que fariam uso dela seriam justamente aqueles que, através das gerações, já superaram seu histórico escravo e hoje ocupam um lugar na classe média ou superior.


Mas sou sim a favor de cotas para negros em mestrados e doutorados. Não podemos negar o racismo ainda presente na sociedade e uma vez que um doutor pode escolher quais trabalhos quer orientar, uma medida se faz necessária.

Sou a favor de cotas em universidades públicas para estudantes de escola pública. Penso ainda que estudantes oriundos de escola pública, necessariamente, deveriam pagar metade da mensalidade em uma universidade particular. Isso não é “dar o peixe”, como alguns gostam de dizer. Isso é dar oportunidade para que uma pessoa que quer, aprenda a pescar.

Dessa forma, então, nossa constituição seria honrada. Poderíamos dizer que somos iguais perante a lei e que, quando não temos igualdade de oportunidades, a lei nos garante esse direito. E não o contrário.


Marina Casadei
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Um comentário:

  1. Difícil explicar a sensação de voltar ao blog (trimestralmente, em média) e ver que há algo novo, autêntico e reflexivo.

    Mais difícil ainda é compreender tamanha identidade e empatia com um passado e pensamento que se distinguem da maioria ao meu redor...

    Não preciso nem comentar sobre a famigerada "jornalista" né, dispensa qualquer investimento de tempo.
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    Música do dia:

    "Driving in a fast car
    Trying to get somewhere
    Don't know where I'm going
    But I gotta get there

    A veces me siento perdido
    Inquieto, solo y confundido
    Entonces me ato a las estrellas
    Y al mundo entero le doy vueltas"

    Have a really nice day!

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