sábado, 31 de outubro de 2015

Será que chegamos ao princípio do fim da cultura machista?

Apesar da tragédia que todos os relatos do #primeiroassedio trazem, fico satisfeita de ver que finalmente este tema ganhou alguma atenção em nosso país. É interessante saber que bons rapazes estão lendo os relatos e perguntando às suas namoradas e esposas, atônitos: “isso é verdade? Essas coisas acontecem?”. Isso porque o tema é tratado de maneira tão velada, ou de maneira tão comum, que a sociedade (especialmente a masculina) não tem dimensão do tamanho do problema.

Seguindo a proposta do #primeiroassedio, registrarei aqui minha experiência pessoal. Não dá para falar só do primeiro assédio, ou do pior assédio, porque a lista é grande e a sociedade precisa saber. 

1) Com 8 anos de idade, um coleguinha da mesma idade simplesmente resolveu passar a mão na bunda de todas as meninas da sala. Inclusive na minha. Eu bati nele, então me senti vingada. Hoje, com 30 anos, me pergunto quem foi o adulto pervertido que ensinou o garoto a fazer isso, pois ele não inventou isso sozinho com aquela pouca idade. 

2) Com 12 anos de idade, comecei a sofrer da clássica humilhação de ser “gritada” de gostosa (em alto e bom tom para todo mundo ouvir) e ser medida dos pés a cabeça por homens de todas as idades (dos 12 aos 70 anos). E, com isso, vieram mãos indesejadas por todas as partes do meu corpo, puxões de cabelo e tentativas de me beijar a força. Certa vez, em um barzinho, um rapaz enorme tentou me agarrar. Eu tentei empurrar, mas como não estava conseguindo me livrar dele, comecei a gritar e me joguei no chão. Ele me largou e me xingou de nomes horríveis. Ao me levantar, notei um segurança guarda-roupa ali, parado, à paisana. Na verdade, ele esteve lá o tempo todo e não fez nada. 

(abrindo um parênteses nessa história de fiu-fiu e chamar de gostosa, isso é tão humilhante, tão repugnante, a minha raiva disso é tão grande, que cada vez que acontece, minha vontade é ter uma arma na mão e dar um tiro na boca do cara. Pior que a maioria dos caras fazem isso a título de piada... Eles riem enquanto nós nos sentimos violadas. Cara, a próxima vez que você mexer com uma mulher a distância, imagina um p# bem grande entrando no seu traseiro... Mas imagina mesmo, veja a cena, pois é esse nível de asco que aquela mulher está sentindo) 

3) Aos 18 anos, sofri minha primeira e única “encoxada” no transporte público. Eu estava no ônibus e uma senhora (com “a” – não é erro de digitação) encostou atrás de mim de um jeito que me senti mal. Estava muito cheio, então achei que o problema era eu. Fui um pouco mais para o lado direito, e ela veio também. Fui mais. Ela veio. Fui mais ainda. E ela veio, se esfregando. Fui para todo o meu lado esquerdo e fiquei longe dela. Aos poucos, ela veio. Até que a velha enfiou sua mão no meio das minhas pernas. Tirei a mão dela e ela fez de novo. Logo um rapaz se levantou e eu sentei… Foi como me livrei dela. Me senti a pessoa mais tonta do mundo. Fiquei com raiva de mim e decidi que isso nunca mais aconteceria. De fato, não aconteceu… Inclusive, certa vez chutei um homem no metrô ao vê-lo encoxar outra moça. Mais engraçado é um monte de gente em volta, se fazendo de morta. 

4) Entre 18 e 19 anos de idade eu trabalhei no comércio, cada ano em uma loja. Na primeira, eu trabalhava com um cidadão escroto chamado Fábio, na faixa de uns 45 anos de idade. Ele tinha uma enteada de 17 anos... Falava que ela era gordinha e que não tinha o meu “corpinho”. Sempre que a dona da loja não estava (e ela saía bastante), ele começava a contar suas histórias sexuais. Quem ele comeu ou deixou de comer na adolescência. Era o tempo todo. Sem falar que ele usava o banheiro de porta aberta, escancarada. Eu não gostava daquilo, mas só me dei conta do nível do problema quando um amigo do cursinho pré-vestibular me alertou. A partir disso, quando dava 18h00, eu saía desesperada correndo, com medo que ele fechasse a porta da loja comigo dentro. Aos 19 anos, fui trabalhar em outra loja e nesta um sujeito, escroto também, na faixa dos 60, chamado Luiz, passou a mão em mim duas vezes. A primeira eu fiquei na clássica dúvida “será que foi impressão?”. A segunda foi no meu aniversário: veio me dar um abraço de parabéns e meteu a mão nos meus seios. Comecei a chorar compulsivamente, me escondi. Depois desci, ainda chorando, falei para ele, na frente de todos mesmo, que sabia o que ele tinha feito e para nunca mais chegar perto de mim. Em seguida, subi na sala do dono da loja para reportar a situação e a resposta dele foi “ah... mas ele é um coitado neh. Eu tenho pena dele”. Pior que esse dono de loja tinha três filhas mulheres – ele não pensou que podia ser com elas? Por alguma razão, passei a odiar aniversários. 11 anos depois, quando alguém vem me abraçar no meu aniversário, eu recuo e as pessoas percebem. É involuntário. 

5) Ainda aos 19 anos de idade, no outro cursinho pré-vestibular, eu costumava dormir muito nas aulas, pois acordava 05h30 e chegava em casa meia-noite... Eu capotava na aula; não conseguia controlar o sono. Se aproveitando desse fato, tinha um colega que costumava me alisar enquanto eu dormia. Era nojento. Combinei com uma amiga para ela não deixar mais ele sentar do meu lado e ela passou a me dar cobertura. Hoje me arrependo de não ter quebrado a cara dele. 

Já fui seguida na rua por um homem que devia estar muito mal intencionado. Já sofri assedio em empresa, praticado por chefe e por chefe de chefe. Já fui humilhada através da internet, porque pegaram fotos minhas e fizeram parecer outra coisa. Desejei, inúmeras vezes na minha vida, não ser mulher. 


Além da violência sexual, do assédio sexual e da violência verbal, as mulheres são vítimas de um outro mal, silencioso, e que está tão enraizado em nossa sociedade que a maioria sequer percebe: o machismo. Machismo este que habita inclusive muitas mulheres e que faz com que assuntos tão graves e tão presentes em nossa rotina sejam tratados com desdém, como algo comum e sem importância. 

Nós ainda somos consideradas culpadas pela maior parte daquilo que somos vítimas. Ou porque saímos, ou porque vestimos, ou porque bebemos, ou porque nascemos. 

Marina Casadei
.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Honra à Constituição Brasileira

Não é meu perfil publicar esse tipo de texto, que tanto me expõe. Mas de alguma maneira que não sei explicar me sinto impulsionada a fazê-lo... Isso porque já passaram 60 dias desde que o escrevi. É como se fosse um dever meu com a sociedade - ou pelo menos, com parte dela.

No dia 31-março, por volta das 07h30 da manhã, ouvi a seguinte frase de uma jornalista da rádio Jovem Pam:

“Segundo a constituição, todos são iguais perante a lei. Oras, se eu sou igual ao meu vizinho, porque ele tem direito a cota e eu não”.

Acho que não preciso dar mais detalhes sobre qual era o tema abordado pelo programa.

A discussão em questão me levou de volta aos meus dezoito anos, pois foi nessa época que os projetos de cota começaram. E nessa viagem de volta ao passado, apliquei o ilustre raciocínio da tal jornalista ao contexto da minha vida naquela época:

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque meu vizinho faz Direito na PUC, enquanto eu passo fome?”

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque eu, que sempre fui uma aluna aplicada, não tenho a menor chance de estudar Medicina, tenho que trabalhar para pagar o cursinho e, provavelmente, nem com 3 anos de cursinho recuperaria tudo o que não aprendi na escola?”

“Oras, se todos somos iguais perante a lei, porque tantos jovens só começam a trabalhar nos seus últimos anos de faculdade, enquanto eu, com 18 anos e cheia de vontade de ser alguém na vida, tenho que trabalhar de segunda a sábado, do outro lado da cidade e ainda aguentar velhos torpes, entre os quais médicos e advogados que alguém deve acreditar que sejam de respeito, me despindo com os olhos, como se eu fosse uma cadela?”

Eu trabalhei por um ano no comércio, em um bairro nobre da cidade de São Paulo. Vivi diversos constrangimentos por clientes me cantarem ou me olharam de certa maneira que jovem nenhuma quer ser olhada. Sofri diversos tipos de humilhação ocasionadas pelo público alvo medíocre que não convém comentar.

Naquela época, eu fiz uma dura escolha na vida: deixei de comer para estudar. Eu almoçava marmita na loja por volta das 13h00 e a noite ia para o cursinho, sem comer nada. Meu salário só dava para pagar o cursinho, a condução para ir ao cursinho e 22 cafés puros, de coador. Na primeira quinzena do mês, eu ainda conseguia comprar um pacote de bolachas Adria e fazia ele durar a semana inteira. Na segunda quinzena do mês, eram só os 50ml de café puro mesmo.

Quando chegou o mês de julho, eu não aguentava mais aquela rotina. E o maior problema não era a fome - já tinha me acostumado. O problema era o inverno. Eu passava frio o dia inteiro na loja, passava frio no cursinho ao ponto de não conseguir prestar atenção na aula e ainda tinha que tolerar gente com aqueles casacos de neve (que acho que os vestiam somente para ter onde exibi-los) dizendo que a sala estava abafada, para esfriar mais o ar. Eu não tinha roupa adequada. Me dirigi ao coordenador para verificar se frente a minha situação seria possível algum desconto na parcela – quem sabe assim eu seria capaz de comprar um casaco. Ele me tratou com desprezo, como sendo a coisa mais comum do mundo um aluno ir pedir desconto, sequer se deu ao trabalho de ouvir a minha história e disse que só o que podia fazer era re-parcelar o curso (as parcelas que iriam até janeiro, seriam redistribuídas até fevereiro).

Saí do cursinho. Poucas vezes na minha vida eu chorei como chorei naquela ocasião.

Eu me pergunto: será que a tal jornalista da Jovem Pam, com seu raciocínio altamente lógico, viveu algo parecido com o que eu vivi?

Eu nunca fui beneficiada por nenhum sistema de cota, nem mesmo pela isenção da FUVEST. Eu não sou a favor de cotas em universidade para negros, porque penso que os negros que fariam uso dela seriam justamente aqueles que, através das gerações, já superaram seu histórico escravo e hoje ocupam um lugar na classe média ou superior.


Mas sou sim a favor de cotas para negros em mestrados e doutorados. Não podemos negar o racismo ainda presente na sociedade e uma vez que um doutor pode escolher quais trabalhos quer orientar, uma medida se faz necessária.

Sou a favor de cotas em universidades públicas para estudantes de escola pública. Penso ainda que estudantes oriundos de escola pública, necessariamente, deveriam pagar metade da mensalidade em uma universidade particular. Isso não é “dar o peixe”, como alguns gostam de dizer. Isso é dar oportunidade para que uma pessoa que quer, aprenda a pescar.

Dessa forma, então, nossa constituição seria honrada. Poderíamos dizer que somos iguais perante a lei e que, quando não temos igualdade de oportunidades, a lei nos garante esse direito. E não o contrário.


Marina Casadei
.